Enquanto as crianças cantavam o que se me afigura constituir o equivalente local à nossa “Atirei com o pau ao gato”, notei que algo me tocava levemente os sapatos. Imaginei que fosse um cão que por lá vagueava. Mas não. Era um rapazinho, com cerca de quatro anos, absolutamente deslumbrado com a textura macia e polida do meu calçado. Por sinal, o mais velho e grosseiro que possuo.
Fiz-lhe afagos na cabecita, na esperança de o distrair e trazer à realidade. Ele olhou para mim, mas imediatamente voltou a concentrar-se naquilo que lhe gerava um inusitado espanto. Certamente porque nunca tinha visto uns sapatos. Muito menos sem rasgões nem remendos, não obstante estarem sujos de uma poeira avermelhada, típica daquela zona.
Fiquei a pensar na diferença de sensações entre quem tem calçado e os que não sabem o que isso é, entre os que vivem de maneira dita digna e os que apenas sobrevivem, entre os que não sentem o corpo porque os órgãos funcionam normalmente e os que não podem abstrair-se do estômago, sede do conflito entre a vida de quem se alimenta e a morte de quem o não pode fazer. E confesso que me emocionei.
Aliás, não foi a única vez. Não admira: não se vai à Guiné –muito mais ao interior- sem essa sensação de pequenez e impotência perante o contínuo fio da navalha que se apresenta à nossa frente como subsistência ou perda da vida.
Mas só isso nos permite compreender, «in loco», o que eu tinha ouvido algumas vezes: «com muito pouco, os missionários conseguem fazer muitíssimo». Ah, sim! Muito mais do que se imagina!
Por isto, sou de opinião de que ninguém deveria poder ser dirigente da sociedade –padre, político, professor, médico, administrador de empresa, animador sociocultural, jornalista- sem passar uns meses em trabalho social na Guiné. Ninguém duvide: ficaria muito mais humanizado. E todos lucrariam!
Curiosamente, a Guiné representa uma espécie de hino à providência divina: nos momentos mais dramáticos, acaba por chegar um pouco que permite a subsistência. Como me dizia um alto responsável, a providência divina existe. E funciona mesmo. Mas essa providência escolheu a via do nosso coração. Então, não a estagnemos, mas deixemo-la circular.