Salão Nobre da Biblioteca do Seminário Maior do Porto – 25 de Março de 2019
Perante uma plateia com entusiasmo de ouvir a nobre missão, estiveram presentes D. Manuel Linda; os 8 Missionários que levaram o Jipe e Pick-up à Guiné, sob apresentação de Sónia Araújo, Padre Alfredo, Reitor do Seminário, Dr. Manuel António, Dr. António Marujo, do 7Margens, e Dr. Frenando Lino, em nome dos 8 Missionários.
A sessão iniciou com cânticos africanos, cantados pelos seminaristas dos Espiritanos.
Sónia Araújo
Abriu a sessão, agradecendo a presença de todos. Depois apresentou o reitor e deu as boas vindas.
Padre Alfredo – Reitor Seminário
Senhor D. Manuel Linda e restantes convidados, quantos quiseram aceder a estar aqui nesta noite. O Seminário Maior do Porto, naturalmente, acedeu a este pedido do Senhor Bispo para abrir este Salão Nobre da Biblioteca, para a apresentação desta iniciativa, que quatro antigos alunos desta casa realizaram com este sentido missionário.
A primeira palavra, como reitor e como membro da equipa formadora dos nossos alunos, é a de saudar a todos que quisestes estar aqui presentes. E, como dizia, fazemo-lo como obediência, também no sentido de comunhão, que temos com o nosso Bispo.
Queria, numa palavra inicial, recordar quatro figuras missionárias, que o Seminário Maior do Porto tem bem entranhado com este espírito missionário. Os nossos alunos, que circulam por estes corredores, só se andarem muito distraídos é que não percebem o alcance da Missão. A começar pela figura de São João de Brito, que deu o nome, neste Seminário, a um dos lugares mais emblemáticos da nossa casa e que foi um reconhecidíssimo missionário do século XVII. Vindo da Índia para se tratar de uma doença, quis correr todos os colégios jesuítas para dar notícia do que se fazia na missão lá longe. Essa é a primeira figura que eu queria evocar.
A segunda figura é, naturalmente, aquele que é considerado o fundador deste Seminário: o Bispo D. João de França Castro e Moura. Foi a ele que, regressado de Pequim, coube instalar aqui o Seminário Maior da Diocese do Porto, que tinha começado no que é hoje o antigo Colégio dos Órfãos, mas que depois colocou a funcionar nesta casa, onde se mantém há mais de 150 anos. É outra grande figura, que importa conhecer, reconhecer e também estimar.
Há bocadinho, a Sónia Araújo lembrava a beleza deste edifício, que se deve particularmente à ação da figura de um outro grande bispo missionário, o D. António Barroso. É a ele que se deve a construção deste edifício da biblioteca, também das dependências das salas de aulas e muito do que é o espírito da Missão da Igreja, seja além, seja aquém.
E, finalmente, a quarta figura que queria evocar também, lembrando a tragédia que aconteceu em Moçambique, é precisamente a de D. Sebastião Soares de Resende. Talvez menos conhecido para a maioria de nós, foi aluno e professor aqui e ordenado Bispo, precisamente como o primeiro Bispo da Beira, em Moçambique. E essa memória, lembrança e evocação também nos fazem sentir que no Seminário Maior do Porto se respira este sentido da Missão.
A Missão, naturalmente, cumpre-se além, mas nós preparamo-nos cá, para a desenvolver nos mais variados âmbitos e setores da vida da Igreja. Por isso, como reitor do Seminário Maior do Porto, saúdo naturalmente esta intuição de o Senhor D. Manuel se associar também a estas grandes figuras que fizeram e construíram este Seminário, não só o que ele é como edifício, mas sobretudo o que ele mais tem do ADN da vida da Igreja e, também, desse desafio de, cada vez mais, nos prepararmos para aquilo que são os grandes desafios da vida da Igreja.
Nós, no dia-a-dia, vamos experimentando um pouco o que significa a Missão mais alargada, não só no âmbito diocesano, porque diariamente convivemos aqui três dioceses: além do Porto, também Coimbra e Vila Real. Esse espírito, nós procuramos transmiti-lo aos nossos alunos, um espírito aberto, um espírito universal, um espírito de compromisso com aquelas realidades que vão conhecendo e que, naturalmente, vão depois condimentando com muitos contactos, que eles têm na Faculdade de Teologia, com alunos de outras congregações religiosas, de outros países, de outras culturas e de outros espíritos missionários.
Por isso, saúdo essa intuição do Senhor D. Manuel de ter querido vir a este Seminário e de, assim, querer também juntar-se a esta lista de bispos da nossa Diocese, que sempre tiveram este sentido da missão, muito realisticamente preparado, digamos assim, no Seminário que nos acolhe como sacerdotes, para depois podermos realizar e desempenhar a nossa missão.
Muito obrigado!
Sónia Araújo
Alguns dos que estão aqui presentes acompanharam esta viagem, toda esta viagem, mas convém agora vermos um pouco do que se passou. Desta viagem demos, por assim dizer, aquele pontapé de saída, na Praça da Alegria, e fomos acompanhando-a também nas redes socias. Pois bem, vamos ter agora um pouco da perceção desta difícil viagem pelo deserto até à Guiné, com um jipe, que levou tanta esperança, um jipe que pode literalmente salvar vidas.
Aquilo que vamos ver agora foi realizado pelo Padre André. É com este filme que vos deixamos, para termos um pouco da perceção desta aventura e do que ela está a ser, porque é uma aventura que não acaba.
Padre André – Mostrou o vídeo realizado das reportagens de fotografias e vídeos durante a viagem.
Sónia Araújo
Muito emocionante. São imagens de muita beleza as que vemos, com tempo até de engenharia para um cafezinho, mas nós não fazemos uma pequena ideia das dificuldades que este grupo encontrou para entregar o jipe. Reparem no que este grupo passou, nos dias em que estiveram no deserto, nas dificuldades e até nos perigos por que passaram para entregar o Jipe, que pode fazer a diferença, e para entregar uma pick-up e uma ambulância, que também foi oferecida. Por isso mesmo, gostaria que este grupo de sacerdotes e de leigos que acompanharam o Padre Almiro se colocasse de pé, para todos os podermos aplaudir.
Nós, com este vídeo, só pudemos ter uma pequena amostra da sua aventura.
Vamos seguir o nosso alinhamento. Agora chamo o Dr. Manuel António, para declamar um texto para todos vós.
Dr. Manuel António – Declama texto do Padre Almiro
Quem chega a África atraca num cais de mistérios, mergulha numa beleza rara e indizível, veste-se de paisagens ímpares e irretratáveis, mas também se vê envolvido numa noite de dramas e sofrimentos incomensuráveis.
Ao fim de meia dúzia de dias, ficamos cansados de ver tanta gente com o corpo nu da dignidade, que deveria ter, mas que lha roubaram; gente com o estômago nu do alimento, que lhe era merecido, mas que lho negaram; gente com a cabeça nua da cultura, que nunca lhe possibilitaram; gente com o coração nu do amor, que nunca lhe foi oferecido.
Mas o que mais atormenta é o olhar de tantas crianças desnutridas, com o rosto pintado de cinzento no preto da sua pele, olhos cavados e olhar sombrio, mas penetrante e reprovador. Algumas nem para berrar têm forças. E são lentos, roucos e arrastados os seus gemidos!
Pudesse eu concentrar num só grito os lamentos de todos os que se sentem crucificados nesta cruz feita de estômagos vazios e condenados à morte por tantos Pilatos, que apenas lavam as mãos, porque não têm a coragem de lavar o coração e a consciência.
O sofrimento dos inocentes é uma voz abafada que deveria ter eco, ao longe e ao perto, mas que vai morrendo estrangulada nos braços da indiferença de tantos que tornam surdos os ouvidos, insensíveis os corações e branqueada a consciência, não se preocupando com o mar de desespero em que tantos outros naufragam. É por isso que se vê ficar a gemer o restolho de tantas vidas ceifadas à felicidade.
Faz-me pena ver pessoas à deriva num mar de problemas e a flutuar em ondas de sufoco. E custa-me ver tanta gente deitada no chão funesto da indiferença, às vezes eu incluído, a ser testemunha passiva deste naufrágio existencial.
A Guiné é o meu Jardim das Oliveiras, ondo sofro a agonia de me ver vazio de soluções. Mas gosto de pousar nela o meu olhar, o meu interesse e a minha compaixão, porque um olhar misericordioso é sempre um olhar onde pousa a poesia!
Namoro o céu, mas foi com a Guiné que eu me casei!
Padre Almiro Mendes
Sónia Araújo
Obrigado!
Vamos também ter oportunidade de ouvir o jornalista António Marujo, nascido em 1961, no concelho de Águeda, licenciado em Comunicação Social, em Lisboa. É jornalista desde 1985, trabalha no Sete Margens, jornal digital de religiões, espiritualidade e cultura. Trabalhou no Público, desde a sua fundação em 1989 até janeiro de 2013, acompanhando sobretudo a informação religiosa. Antes, passou pelo jornal Expresso e Diário de Lisboa, pela revista Caritas e pelos programas Toda a Gente é Pessoa, da Antena um, e Setenta Vezes Sete, na RTP. Vencedor das edições de 1995 e 2006 do Prémio Europeu de Jornalismo Religioso, na imprensa. Colaborou em diversas publicações e foi coorganizador das cinco antologias de textos de Frei Bento Domingues. Colaborou em várias obras coletivas e publicou duas dezenas de livros, alguns em coautoria, entre os quais a Lista do Padre Carreira, a Senhora de Maio, Todas as Perguntas sobre Fátima, e Papa Francisco, Revolução Imparável.
António Marujo – Jornalista
É com muito gosto que estou aqui, ao lado do Senhor D. Manuel Linda, do Padre Alfredo e à frente destes oito magníficos. Estou também metido numa outra aventura, iniciada poucos dias antes desta ida dos oito magníficos à Guiné, que é o jornal digital Sete Margens, que eu gostava de vos mostrar.
Começando pelo princípio, quando vimos a notícia de que quatro padres e quatro leigos iam entregar dois veículos à Guiné Bissau, deixando-os lá em missões e organizações não-governamentais de cooperação, pensamos, obviamente, dar também notícia. Mas, num momento a seguir, pensamos que, se publicássemos apenas a notícia de que quatro padres mais quatro leigos iam até à Guiné oferecer um jipe e uma pick-up e que uma ambulância seguiria também para lá, de barco, a notícia morreria aí. Então, um de nós, da equipa, questionou-nos se não seria de lhes pedir um diário de viagem. Isso permitiria acompanhar os sentimentos, as aventuras, as desventuras também, porque houve alguns percalços ao longo do percurso. Sobretudo permitiria perceber o que leva oito pessoas até à Guiné Bissau, com este sentido de proximidade e de solidariedade para com aquelas populações mais pobres.
Esta nossa ideia tem tudo a ver com um dos objetivos da aventura de Sete Margens que alguns jornalistas e pessoas ligadas aos meios da comunicação social nos decidimos concretizar, há uns quantos meses, e que teve a tradução visível, aberta a toda a gente, desde o dia 7 de janeiro.
Porquê Sete Margens? O número sete na tradição bíblica é o número que pretende simbolizar a totalidade. Nós andamos meses à procura de um título e queríamos que esse título dissesse muito daquilo que queríamos fazer com esta experiência. Queríamos trazer tudo aquilo que está à margem, tudo aquilo que é pouco falado nos meios de comunicação, nas televisões, tudo aquilo que escapa aos jornais, tudo o que, no fundo, é pouco falado, pouco visível. E quando surgiu o Sete Margens, experiência que é muito frágil, nós pensamos, de facto, que estava à frente dos nossos olhos realidades que não se veem mas que queremos trazer para o jornalismo que fazemos. O ficarmos por uma notícia que dissesse que oito pessoas vão à Guiné era muito pobre para a riqueza da experiência que estava diante de nós. Portanto convidamos o Padre Almiro, que nenhum de nós, da equipa do Sete Margens conhecia, uma vez que ele era o rosto que aparecia nas notícias. Telefonei ao Padre Almiro, praticamente na antevéspera da partida, dizendo-lhe que tinha visto esta notícia e que gostava de perguntar para já as motivações desta viagem, para eu escrever um texto. Depois disse-lhe que tinha uma proposta para lhe fazer. O Padre Almiro aceitou imediatamente: vamos ver se a internet funciona, se há as comunicações, mas sim, vamos avançar.
E resultou em cheio. Tivemos muita gente a dizer que tinha sido uma ideia fantástica, muita gente a acompanhar este diário, de que publicamos 11 textos. Ficaram muitas coisas na carteira, do que eu me penitencio. Como foi tudo muito acertado em cima da hora, houve pormenores que fomos acertando ao longo do percurso, através de Whatsapp, Facebook, mail, etc. Os oito peregrinos, a dada altura, começaram a mandar entrevistas que foram fazendo uns aos outros, das quais eu só publiquei a primeira, porque depois foi matematicamente impossível, num dia de 24 horas, pegar em todas as entrevistas, tratá-las, editá-las, procurar as fotografias que também ia recebendo e publicá-las. Portanto, ficaram 7 entrevistas na gaveta mas pode ser que um dia dê para recuperar alguns desses elementos.
De todo este diário, o primeiro texto relata o primeiro dia da peregrinação. E todos os 10 dias até à Guiné foram também uma aventura muito engraçada do lado de cá. Começou tudo muito bem. No primeiro dia, eram 22h ou 23h da noite e eu tinha o texto comigo. No segundo dia, deveriam ser para aí 00h ou 1h da manhã. Depois, a partir daí, eram 2h ou 3h da manhã, de tal maneira que num dos dias, penso que já passava das 3h, resolvi ir dormir qualquer coisa e de manhã logo veria. No dia a seguir, o Padre Almiro pergunta-me o que é que aconteceu, pois já várias pessoas lhes tinham telefonado a perguntar se aconteceu alguma coisa, porque não tinham notícias através do diário de viagem. Eu respondi que foi só esta questão horária que não permitiu.
Àquelas horas da noite, eu já estava sozinho à frente do computador, pois o resto da família já estava a tratar de descansar para o dia seguinte. Conferia mapas e ia ver nomes de lugares de que o Padre Almiro falava, contando coisas interessantes de que eu nunca tinha ouvido falar. Achava uma piada imensa às aventuras que ele contava, e agora dei-me conta de uma coisa, Padre Almiro, é que isto parece que estava tudo escrito nas estrelas: Ao sétimo dia, vocês estavam sete horas à espera de passar uma fronteira, porque os senhores polícias tinham ido rezar e, pelo meio, almoçar qualquer coisa, porque era hora do meio-dia. Isto, obviamente, que tinha sido ao sétimo dia, com 7 horas à espera, tinha de ser tudo publicado no Sete Margens. De facto, o número sete estava fadado para nos pôr em contacto.
Nos textos do Padre Almiro ressalta o humor, a história, apareceram vários locais históricos da passagem pelos portugueses. Tragicamente, a ilha de Goree também tem marcas portuguesas, pois também temos uma história pesada nos nossos ombros, no início da escravatura, da escravatura moderna e da escravatura africana. Temos muitas culpas nisso também. Esse roteiro cultural aparecia também muito refletido ao longo dos textos. Era uma visita guiada pelo património histórico, pela cultura daqueles povos, que afinal nos estão tão perto. A capital Rabat parece que é mais próxima de Lisboa do que Madrid.
Portanto estas realidades estão aqui a 1000/2000km, tão perto de nós, e nós praticamente ignoramo-las, não conhecemos nada. E eu penso que este diário de viagem ajudou a quem o leu, a mim ajudou-me pelo menos, a perceber mais uma vez que é preciso nós, enquanto portugueses, enquanto europeus, termos um outro olhar para África.
A propósito destes dias da tragédia em Moçambique, que é uma tragédia inominável, há uns poucos de anos fui fazer uma reportagem na zona de Pemba, mais a norte da Beira e de Nampula. Pemba está na costa, poderia ter acontecido a Pemba o que aconteceu à Beira. Imaginem 90% da cidade do Porto destruída por uma catástrofe. Foi o que aconteceu à cidade da Beira, que tem 500.000 pessoas. Estive numa aldeia, a uns 200km da costa. Nessa aldeia de Pemba, no interior da província, a grande preocupação das 4/5 mil pessoas que ali moravam era terem um poço que evitasse fazer deslocações de 15/20 km, todos os dias, para ir buscar a água. E quem vai buscar água normalmente são as mulheres e as crianças. Transportam baldes na cabeça, nas mãos. A grande luta dessas pessoas era poder abrir um poço para ter água na sua aldeia e não ter que fazer 15/20 km na ida e 15/20 km na vinda. A abertura de um poço desses, para dar água a alguns milhares de pessoas, custava, há oito ou nove anos, 70 euros. É o que nós gastamos às vezes num almoço de amigos, para irmos a um concerto, para irmos fazer uma curta viagem a Portugal. Esse dinheiro permite dar de beber no quotidiano a alguns milhares de pessoas.
A propósito da tragédia da Beira, alguém dizia que a ajuda que estamos a dar a Moçambique não é ajuda nenhuma, é apenas devolver aos africanos aquilo que andamos a retirar de África há muitos anos. E esta consciência passou também nos textos do Padre Almiro, de outras maneiras e com outras expressões, trazendo outras cores e outros sabores, até os sabores de algumas músicas que aqui ouvimos. Aliás, ouvimos aqui algumas impressões escritas pelo Padre Almiro, lidas pelo Dr. Manuel António.
Eu penso, desde logo, que quem não acompanhou este diário pode ainda revisitá-lo no Sete Margens, onde aparecem todos os textos, que são uma delícia. Às vezes, tinha vontade de publicar mais fotografias, mas o seu peso é demasiado. Para os próprios títulos, era eu que procurava no texto do Padre Almiro uma expressão interessante, engraçada, uma coisa chamativa, que desse um bocadinho de sentido ao texto desse dia. Por exemplo, “o descanso, o tango e as preces”, sendo as preces também relacionadas com o futebol.
Convido a quem já o fez a visitar e a revisitar os textos. E a quem ainda porventura ainda não o tenha feito, convido a lê-los.
Uma última nota, para dizer especificamente algumas coisas acerca do Sete Margens. Então, o que é que somos? Eu disse no início, que somos um jornal de religiões. Definimo-nos como um jornal de religiões, espiritualidades e culturas. É um jornal digital, porque não está em papel, portanto só é acessível através da Internet. Todos nós da equipa fundadora somos oriundos do jornalismo, embora uma das pessoas esteja agora no meio académico e uma outra em várias outras atividades ligadas à comunicação. Temos todos a convicção de que a questão religiosa é cada vez mais importante nas nossas sociedades, embora praticamente seja ignorada pelos meios de comunicação. Obviamente essa questão não é ignorada quando há um atentado terrorista, feito por um muçulmano, por exemplo, por gente que se reivindica do Islão. Mas ela só é tratada na praça pública quando acontecem episódios violentos ou escândalos, como a pedofilia e os abusos. A nós parece-nos que há muito mais para falar do que apenas esse tipo de episódios.
E depois pensamos que estas questões precisam de ser debatidas. O Papa Pio XII, há uns 70 anos, falava da importância da opinião pública no interior da Igreja Católica. O que queria dizer com isso? É importante a que as pessoas aprendam a debater ideias, mesmo quando pensam diferente umas das outras. Acho que todos fazemos a experiência de sermos amigos de pessoas que pensam de um modo diferente de nós em milhares de coisas. Eu sou casado com uma mulher que é muito diferente de mim em muita coisa e, apesar de tudo, continuamos casados. Se fazemos esta experiência de diversidade com os nossos amigos, com a nossa família, com outras pessoas, devemos aprender a fazer o mesmo no interior das comunidades religiosas, sejam elas católicas, cristãs ou de outros credos. E essa foi também uma das nossas convicções, ou seja, trazer para a praça pública os debates que correm no interior das instituições. Porque estamos num tempo em que há um Papa que nos provoca, achamos que estão conjugados muitos fatores.
No site, há outras coisas que temos escrito sobre nós. Há, por exemplo, um texto sobre o estatuto editorial, onde nós enunciamos o que pretendemos ser. Estas são algumas das intuições mas queremos fazê-lo também de um modo, desde logo, plural. Temos gente diferente a escrever para nós, de um modo muito aberto, respeitando apenas duas regras muito simples. Uma delas é termos respeito todos uns pelos outros, independentemente do que pensamos. Eu já publiquei textos de pessoas, a quem nós vamos pedindo artigos, com os quais não concordava. A outra regra é ter bom senso e bom gosto, ou seja, não aceitarmos tudo o que seja apelo ao ódio, racismo, xenofobia. Há, de facto, limites que nós nos impusemos mas que hoje estão em causa nas nossas sociedades, sobretudo nas sociedades europeias e ocidentais. Na América isso também é uma triste realidade neste momento. Portanto, impusemos esses limites. Quanto ao resto, queremos discutir todos os temas: refugiados, xenofobia, crescimento dos populismos, a política, o papel dos cristãos na economia. E ter em atenção as realidades mais escondidas, de que estes oito peregrinos nos trouxeram tantos elementos, tantas coisas deliciosas para quem os leu. Por isso, muito obrigado a vocês todos.
Sónia Araújo
De facto, fez bem lembrar as dificuldades que se passam na Guiné e já estamos todos com o coração em Moçambique. Já estão a ser feitos apelos e várias campanhas nos vários canais de televisão e não só. Os portugueses já demonstraram que são solidários e que respondem a pedidos de ajuda. Desta vez, também o vão fazer, certamente. São as desventuras que não param, infelizmente.
Temos vindo a falar dos sete magníficos, mas efetivamente há mais. Deixem falar agora o Dr. Fernando Lino, médico, também ele missionário. Ele falará agora por estes missionários, que também partiram do Porto em direção à Guiné.
Dr. Fernando Lino – Leigo peregrino
Queria dar as boas vindas, gostei da introdução de missionário. Eu realmente tinha aqui nos meus papéis, o que tinha para falar. Eu olho para vocês, sentado desse lado a olhar para os que foram à Guiné há 15 meses atrás. Eu achava isso completamente impossível. Era algo que estava fora dos meus horizontes e, no entanto, nestes 15 meses fomos lá três vezes. Isto é algo contagioso que se apanha e que depois de se ter conhecimento não se consegue mais dizer que não.
Ligado ao termo missionário, eu vejo sacerdotes de barbas longas, julgo que eram os Combonianos. Isso para mim era um missionário. Eu julgo que os missionários religiosos continuam a ter mais ou menos barba, como o nosso Padre Teixeira. Julgo que os missionários continuam a ter essa vertente essencial de evangelização das populações e de apoio humanitário a essas populações. Ninguém pense que quem vai montar uma Missão, seja de sacerdotes ou de freiras, não presta nesse local ajuda humanitária, não cria a sua própria organização não-governamental, porque na Missão existem estas duas vertentes.
Nós, os chamados leigos, éramos só quatro, mas na realidade éramos só três, porque um de nós, o Tito Baião, é tudo menos leigo. Na terminologia portuguesa, leigo é aquele que não sabe, mas o Tito Baião é o homem que já deu a volta ao mundo duas vezes em mota, já fez inúmeros trajetos solidários. Portanto, é tudo menos leigo.
O Senhor Padre Almiro foi a minha casa jantar. Pelos vistos, tratei-o mal e ele desafiou-me: Não quer vir à Guiné? Nós vamos lá levar um jipe. E eu disse-lhe que a ONG a que pertenço (estamos a trabalhar a Rota dos Povos) precisa de um transporte urgente para a sua missão, na Guiné. É que um indivíduo, o meu amigo Luís Pedro, tem uma pick-up, que adquiriu. O António Ribeiro, que é meu amigo e sócio, se eu levanto a voz, diz logo: eu vou atrás de ti, se for preciso vestir-me de mulher também me vou vestir.
Claro que levamos o não leigo, que é o homem experiente para nos dar conforto durante esta viagem. Infelizmente deu-nos muito pouco conforto, porque ele esteve doente e deu mais trabalho ao médico, mas ele sabia que estava em boas mãos.
Começando pelo princípio, o Padre André que além de mais é um excelente cozinheiro, fez ali um excelente trabalho. A viagem não foi nada daquilo que se viu nas fotografias. Eu estou espantado, porque eu vi agora coisas que eu não vi na viagem. Eu ia tão concentrado, com tanto medo, tão cansado, que realmente não vi nada daquilo. Nós fizemos um almoço, aqui há dias, em que passaram uma série de fotografias e de filmes, coisas maravilhosas, por onde nós passamos, que realmente não usufruímos. E não usufruímos porque o programa era muito apertado. Tínhamos o Padre Luciano, que projetou esta viagem. Projetou-a em oito etapas, a sairmos às 5h30 da manhã e chegarmos ao destino às 22h-23h da noite. Isto, parando para comer uma sande na traseira do jipe ou da pick-up. É realmente muito duro. Não aconselho isso à maioria das pessoas que estão aqui, mas a maioria das pessoas que estão aqui podem ser missionários. Há voos do Porto e Lisboa, via Casablanca, e a Guiné é realmente uma surpresa para nós Europeus e para nós Portugueses. Nós podemos desempenhar esta missão nesses locais, podemos ser realmente missionários. No nosso caso, não vamos evangelizar, vamos prestar auxílio humanitário. Realmente, como o Senhor Bispo disse e escreveu, com muito pouco faz-se muita coisa. Também escreveu que nenhum médico, nenhum administrador de empresa, nenhum político, deveria começar a exercer a sua atividade sem ir a um local como a Guiné, e já agora, puxando a brasa para a nossa sardinha, Rota dos Povos, sem ir a Catió.
Nós temos jovens de Catió em Portugal, que estão cá a estudar. Catió é realmente um lugar perdido em África. Temos ideia de que África é um sítio agreste. Vimos como uma intempérie criou aqueles problemas na bacia da Beira. No nosso verão passado, inverno na Guiné, naquela zona de Catió houve intempéries em que morreram pessoas e que destruíram escolas. Fomos visitar algumas dessas escolas, onde basta voar o telhado para ficarem destruídas. Como os tijolos são de terra, imediatamente são dissolvidos com a chuva. Praticamente não se ouve falar disso cá. Eu conheço Moçambique e conheço a Guiné. Realmente, Moçambique parece a Europa, comparado com aquela zona do sul da Guiné e com a zona ocidental, onde o Senhor Bispo esteve. Curiosamente o Senhor Bispo esteve em Caió, e nós estivemos em Catió. São dois extremos completos.
Nós separamos a nossa viagem, depois de toda aquelas maravilhas paisagísticas que viram nas fotografias, e que eu não vi. Aliás, há uma zona que é terra de ninguém, entre Sahara Ocidental e a Mauritânia. Eu só depois desse almoço é que vi que estavam lá carros destruídos, porque a zona é um terreno minado. Eu só via a traseira do Padre Almiro lá no Jipe, não olhava para lado nenhum. Ninguém informou, nem sequer o Tito Baião, que aquilo era terreno minado, que aquilo não tem estrada. Podíamos ir por um lado ou por outro, podia-se realmente escolher.
Mas pronto, chegamos a Dakar, que para mim foi um sítio espetacular, porque julguei que não ia chegar lá. Eu tenho alguns problemas de conseguir estar 12/14 horas em atividade tão intensa como é esta viagem. Chegamos a Dakar. Agora, falando num aspeto religioso que me surpreendeu muito, foi aquela missa em Dakar. Se houvesse missas assim aqui em Portugal, que bonito que seria. A missa de São Pedro, em Dakar, com aquela quantidade de juventude, vale a viagem. Ainda por cima, íamos bem acompanhados de quatro padres! Naquela missa tão viva, cheia de crianças, como era na nossa juventude, todas as pessoas estavam vestidas como se fossem para o seu casamento ou como se fossem para uma comunhão solene. Portanto algo muito interessante.
Outro aspeto que me tocou muito, porque sendo nós leigos, não estamos habituados a isso, foi, quando saímos no dia seguinte, às 5h45 de Seminário Espiritano de Dakar, ver aquela missa que estavam a celebrar naquela capela pequena, à entrada, de noite escura. Tocou-me ver aquela quantidade de pessoas que se levantaram, para assistir àquela missa às 5h30 da manhã, numa segunda-feira. Achei que tinha a esperança. Nós em Portugal, tirando as missas do Padre Teixeira em Oliveira do Douro ou do Padre Almiro, (às outras ainda não fui assistir) precisam de mais dinamismo. Não é crítica, Senhor Bispo. Aquela missa em Dakar tenho esperança de que vai dinamizar as nossas missas porque o Padre Luciano gravou-a toda, os cânticos todos, e o Padre Teixeira fez a mesma coisa.
Chegando a Kolda, no sul do Senegal, separamo-nos. Os quatro companheiros do jipe, com quem criamos um elo para a vida, dirigiram-se para, porque iam para Bissau esperar pelo Senhor Bispo. Nós direcionamo-nos para sul, para Catió, e entramos realmente no inferno, que é a Guiné Bissau. Nós passamos da fronteira do Senegal para a Guiné Bissau e tivemos uma estrada até Bafatá, que eram 60/70 km. Demoramos sete horas a fazer essa estrada. Estrada é uma forma de expressão, porque, ainda por cima, fomos atrás de um transporte público, chamado Toca-Toca, porque não olha para os buracos, e anda-se um bocadinho mais rápido, se aguentarmos o pó.
A Guiné é realmente um país maravilhoso, de gente maravilhosa, mas que tem um problema. Ao contrário dos outros países, que vão tendo o seu crescimento e desenvolvimento, a Guiné vive de golpes de estado, de guerras internas. Passou de uma situação de algum desafogamento, de algum desafogo, para uma situação de extrema necessidade em que tudo falta. Nós realmente não conseguimos imaginar.
Nestas três deslocações que tive a Catió, nas duas primeiras era um missionário tímido, um missionário de cinco estrelas. Ia dormir a Saltinho, uma pousada que fica a uns 60/70 km. Desta vez, o nosso não leigo, o Tito Baião, não permitiu tal coisa aos quatro que levamos a pick-up até Catió. Ficamos duas semanas em Catió.
Qual foi o motivo último de levar a pick-up?
E já agora que (o jornalista) falou em sete, se quiser, pode tomar nota de mais um número sete. No dia 7 de fevereiro, estávamos nós em viagem, nasceu um bebé em Catió e faleceu a mãe. Nós levávamos 140 kg de leite de substituição materna. Foi essa a principal razão de irmos por terra, porque tínhamos dois contentores de 40 pés. Chegaram em janeiro, Tito Baião e Susana estiveram lá para desalfandegar. Levava leite, mas entretanto houve um casal de gémeos que nasceu no hospital de Catió, se é que se pode chamar hospital ao hospital de Catió. Mas tem lá alguns heróis a trabalhar. O leite que levamos foi usado no casal de gémeos. Um faleceu entretanto, porque a mãe não tinha leite. Nós, sem sabermos, quando estávamos em viagem, nasceu outro bebé, não se sabe com que tempo de gestação. Nasceu na Tabanca e foi trazido de emergência para o hospital. Pesava 1400 gramas. Esse leite de substituição, em frascos pequenos e não em pó, serviu para alimentar os gémeos. O bebé do dia 7 de fevereiro, agora está com 2500 gramas. Não deveria estar numa incubadora? É claro que devia estar. Com aquele peso, em Portugal era um caso perdido, mas como Catió tem temperaturas entre os 30 e os 38 graus, é uma espécie de incubadora, embora falte o enriquecimento de oxigénio e da humidade controlada, uma série de coisas. Mas, em contrapartida, tinham o leite de substituição, porque no contentor foi algum. Na viagem, o Tito e a Susana já tinham levado alguns frascos e nós na pick-up levamos o reforço, que terminou agora há dois dias. Estamos a preparar uma nova remessa desse leite. Portanto, numa viagem em que pensávamos que íamos levar (material) de uma equipa desportiva, para distribuir pelas escolas, acabamos por levar sobretudo leite de substituição materna.
A experiência de vivermos quase 2 semanas dentro do orfanato.
Só quando chegamos cá é que pensamos bem que estivemos a viver dentro de um orfanato de bebés. O orfanato é gerido por nós, em que o Tito Baião é presidente, mas julgo ser caso único. A responsabilidade é nossa, mas o rapaz que fazia as contas é o Guri, que está aqui presente. Eu olho para ele e parece-me que tem 16 anos, mas tem 26 anos. Esteve no orfanato a tomar conta dos bebés. O Guri distingue-se pelo seu cuidado meticuloso, pela forma como apresenta as contas, orienta e gestiona a dispensa, como não deixa que falte nada e pela forma como trata as crianças. O presidente e o vice-presidente da Rota dos Povos tiveram de tomar uma decisão: Guri, vens para Portugal, vais estudar novamente o teu ensino secundário, para fazer uma licenciatura. Mais três colegas, que também estão aqui presentes, estão a estudar para concluir as suas licenciaturas. Quando nós já estivemos lá, já estavam a trabalhar no terreno, o que para qualquer de nós é inimaginável. Viver em Catió onde não há luz, agora há água às vezes, onde não há recolha de lixo, onde o lixo convive connosco, onde os animais domésticos e não domésticos convivem connosco e habitam às vezes na nossa habitação, não nos deixando dormir de noite, é algo fantástico. Conseguir trazer estas pessoas, formá-las e elas aceitarem voltar, esse é o aspeto para mim mais importante. Já temos a Eulália, que vai ser a diretora do infantário da Rota dos Povos, em Catió. Um infantário para crianças pobres.O nossos problema é saber qual é o critério para selecionar 30 crianças em Catió Como fazê-lo? Temos debatido este assunto. Como vamos fazer? Entram os amigos do Guri e da Tulai, que toma conta dos bebés, os amigos do partido? Como fazer isso? Problema importante, porque estas crianças que vão estar no infantário que estamos a construir, e que estará pronto dentro de três semanas, vão ter pequeno-almoço, refeição a meio da manhã, almoço. Vão ser pessoas privilegiadas naquela zona. Como fazer esta seleção?
O que fomos fazer com estes quatro espetaculares, que por acaso são sacerdotes? Eu julgo que, se a Igreja tivesse uma dúzia destes sacerdotes e um ponto de apoio… A forma carinhosa e humana e muito terrena, perto das pessoas, sejam grandes, sejam pequenos, importantes ou menos importantes, é absolutamente fantástica.
A lição que o Senhor Bispo deu, ao ir a Caió conhecer aquelas crianças, é algo que só poderá ser imitado na sua segunda ida, que será a Catió. A estrada de Catió a Tombali de Baixo dá direito a diploma, passado por Tito Baião. Este trajeto é inigualável. Ao fim de 7 horas de viagem, fiquei espantado com a dignidade que encontramos na última tabanca, onde na escola estavam as crianças com a sua dignidade, com uniforme. No meio do mato, demos boleia, para a escola a algumas crianças. Elas vão à escola que voou, pois foi destruída pelas chuvas, mas as pessoas estão ao lado, já com tijolos novos para construir nova escola. E isso para nós é o exemplo máximo.
Numa próxima ocasião, convidamos os nossos quatro padres e o Senhor Bispo a visitar Catió e o nosso orfanato, a nossa escola, a visitar algumas das 140 escolas equipadas com material da Rota dos Povos e a visitar o hospital, onde esperamos colocar uma cozinha. É um drama ser internado num hospital, pois tem de ir a família atrás, porque o hospital não fornece comida, não fornece medicamentos. Agora já tem lençóis, porque nós os levamos no ano passado. Portanto, a família tem de estar ao lado das enfermarias. Fazem uma fogueira, cozem o seu arroz, fazem o seu molho para poderem servir o doente que está internado. Nós vamos tentar fazer uma pequena cozinha com fogão a lenha, porque lá não chega a eletricidade.
Sónia Araújo
Quem fala assim é a paixão. Se hoje estamos aqui a falar da Guiné e desta missão é porque em boa hora o Senhor Bispo do Porto ofereceu um jipe e uma quantia para esse povo. É apenas a ponta do iceberg. Ele deu o arranque para este desafio que nos espera. Certamente terá muito trabalho pela frente mas será muito bem acompanhado.
Convidamos o Senhor Bispo a dirigir a palavra a esta nobre e ilustre plateia. Muito obrigada também pelo convite para estar aqui.
D. Manuel Linda – Bispo do Porto
Saúdo esta vasta plateia, aqueles que são recebidos do exterior, e agradeço ao Senhor Reitor por nos ter aberto as portas deste Seminário. Saúdo a todos, mas permitam que faça duas referências. Uma aos heróis, grandes aventureiros por boas causas. Há bocado, falou-se nesta expressão de leigos no sentido de menos competência, mas isso já está ultrapassado. Para nós, leigos representam muito. Vocês, que têm esta Rota dos Povos, tão maravilhosa, e os senhores padres. E depois, uma saudação aos dois comunicadores. À Sónia Araújo, que emprestou o seu nome e a sua figura, para que também se divulgasse no programa de televisão esta aventura por uma boa causa, e também ao jornalista António Marujo, comunicador de outro género, pela escrita, mas conhecedor.
Se eu quisesse definir-me no meio disto tudo, diria que sou apenas um oportunista de aventura. Já encontrei a marcha em andamento e depois pendurei-me apenas. Aceitei o repto lançado pelo senhor Padre Almiro e fui lá ter com eles, levando o que tinha sido 50% do contributo penitencial da Diocese do Porto, no ano anterior, cerca 45.000 euros e, de alguma maneira, para dar um pouco de nome e visibilidade a este gesto tão bonito.
Se me permitem, agora que estamos no fim do dia e temos todos o direito a estarmos cansados, direi então algumas coisas pequenas. Tudo isto acontece por Missão. Ao princípio era a Missão. Há muitos anos atrás, o Padre Almiro era o secretário diocesano das Missões e, nesta linha, aceitou o desafio de ir à Guiné. Ficou encantado e contagiou outros sacerdotes, dos quais estes três que o acompanharam. Mas há outros da nossa Diocese do Porto, que já lá foram. Desta vez foram estes quatro: Padre Almiro, Padre Luciano, Padre André e Padre Teixeira.
A Missão tem implicação, não é só chegar lá. No fundo, foi aquilo que eu fiz, chegar lá e deixar qualquer coisa e depois regressar. Não! Missão é fundamentalmente esta capacidade de estar com as pessoas. Mesmo a nível religioso, não se começa logo por falar no mistério da Transubstanciação da Eucaristia ou na Unidade da Trindade. Não! Começa-se por fazer a experiência que fez Jesus Cristo, que é estar com as pessoas, participar no seu estilo de vida, nas suas limitações, e depois com elas tentar forma de suprir as suas carências, que são imensas. Esta libertação do Evangelho começa quase sempre pelas coisas mais simples da vida. O Senhor Jesus não começou pelo Sermão da Montanha, começou por curar os leprosos, dar vista aos cegos, estar com as pessoas de ânimo abatido, enfim. Hoje é isso que é mais importante na sociedade, como a guineense. Foi com certo escândalo que vi grandes cartazes, como nós temos aqui de publicidade, a apelar ainda à excisão genital feminina, certamente praticada, por outros meios. Pensei que já não acontecesse isto, mas certas superstições, de facto, levam a que as pessoas vivam oprimidas pelos seus medos. Tudo tem de começar por aqui, com a promoção humana e com uma promoção cultural e escolar.
Compreendo melhor agora o que Paulo VI escrevia, na época de tanto otimismo, em que a ONU tinha um plano para erradicar a fome no mundo. Nos anos sessenta vivia-se o otimismo, pensava-se que era tudo um mar de rosas e as coisas transformavam-se. O desenvolvimento é humano, tem que ser integral ou não o é. É nesta linha que felicito vivamente a Rota dos Povos, porque está presente a este nível mais básico, com gentes concretas. Sim, porque nem tudo o que chamamos ajuda ao desenvolvimento o é efetivamente. Às vezes pode ser agressão. Certas ONGs têm lá pessoas a ganhar 10.000 euros mensalmente. Isto é uma agressão, por exemplo, aos professores, que me disseram que, ao longo deste ano escolar, estão a receber quanto muito um saco de arroz ao fim do mês. Claro que não pode haver um salário em Bruxelas para os técnicos que lá têm as Nações Unidas e a União Europeia e um outro para a Guiné, é verdade, mas é de duvidar fortemente se determinadas ajudas são isso mesmo ou se são redes para engordar alguns à custa da fome de muitos.
A Missão é inerente à fé cristã. Na nossa liturgia, a última palavra que se diz na Missa é «Ide». Tendes a missão de ir lá para fora para o mundo para o transformar. Ide em paz e o Senhor vos acompanhe é, hoje em dia, dizer ide em paz e ninguém se meta convosco. O espírito da liturgia não é este. O espírito da liturgia é dizer ide porque tendes muito que fazer lá fora. E é nesta linha que eu gostaria que nós experimentássemos a Missão, seja em Caió ou Catió, onde eu espero ir qualquer dia. Terei muito gosto de brevemente experimentar isso, se Deus quiser, porque quem recebe somos nós, não são as pessoas de lá. Nós humanizamos, e se às vezes cair uma lágrima, não é nada de mais. Por exemplo, quando na presença de 60 ou de 70 crianças distribuí rebuçados, que eu não levei, pois não tive sequer presença espírito de levar mas que me deram e disseram Senhor Bispo dê um rebuçado a cada uma. A maneira como as crianças só estendiam a mão quando eu chegasse junto delas, aquele sentido coletivo, comunitário, impressionou-me quase até às lágrimas.
Quem lucra não são eles, somos nós, e o que o Dr. Fernando disse eu volto a repetir: Não deveria haver nenhum padre, nenhum médico, nenhum professor que não fizesse a experiência de Missão. Chamamos cooperação, mas a nível de Igreja chamamos mais missão.
Para terminar, estou convencido que a pergunta que todos temos de fazer é esta: O que posso fazer? Se calhar, não posso fazer nada. Não é esta a pergunta de quem quer cruzar os braços? A pergunta que temos de fazer é esta: O que é que eu vou fazer mesmo, efetivamente?
A vossa ajuda ao desenvolvimento, com esta ONG Rota dos Povos, é uma espécie de modelo. Que neste ano de 2019 se criem no mínimo mais 10 e que no ano 2020 se criem mais 100, e que multipliquemos este género, porque a partir desta atuação concreta nós conseguimos ajuda ao desenvolvimento, à promoção e, depois de atingir um determinado patamar, as pessoas ajudam-se mutuamente. Agora também já se ajudam, mas depois o desenvolvimento é mais fácil. Estou convencido que realmente o povo da Guiné está num patamar, por motivos que lhe foram impostos. Neste momento é difícil de dar um certo salto, mas se nós promovermos um bocadinho mais, depois ele será capaz de dar esse mesmo salto.
Parabéns àqueles que, com muita convicção e com as mãos na realidade, estão a fazer tanto, não o fazendo de maneira estranha às pessoas da Guiné, mas com as pessoas da Guiné, para que, de facto, nós possamos sentir uma fraternidade.
Portugal não tem as mãos muito limpas na relação com estes povos de África. Curiosamente deixamos os povos com mais problemas, todos com guerras civis, graças a Deus já ultrapassadas, e todas com muito precárias condições de desenvolvimento. Se nós não fomos capazes de fazer em tantos anos que lá estivemos, façamos ao menos agora.
Parabéns e felicidades!
Sónia Araújo
Alguma questão aos oradores dos presentes?
Desde já, agradecendo a vossa presença.
Dr. Manuel António proclama texto do Padre Almiro
Esta África está a pedir, em silêncio e já há muito tempo, uma obra de aglutinação de esforços da Comunidade Internacional, Igreja incluída, para sair do marasmo e atonia de uma pobreza endémica, que tem funestas consequências.
Parece-me que a tarefa mais imperativa e inadiável a realizar em África, e na Guiné em particular, é revestir o ser humano de encanto e beleza, de dignidade e de felicidade, para que a Civilização do Amor passe de mero ente de razão à mais extraordinária e feliz das realidades.
Impossível? Há quem tenha força de vontade e há quem tenha vontade de não ter força. Para mim, o impossível é só o que a gente não quer, ou não tenta; é simplesmente o que ainda não aconteceu.
O que primeiro se deve desejar para esta África, e o essencial que se deve procurar para a Guiné, é esta marcha do Homem para a plena consciência da sua liberdade e responsabilidade, da sua dignidade e divindade, da sua crescente libertação e plena realização. Esta viagem para este progresso não é fácil, nem é cómoda. Mas será a única forma de não vilipendiar o Homem nem de insultar Deus!
Não basta filosofar sobre a endócrina pobreza em África e sobre o infinito sofrimento, que aqui montou tenda. Impõe-se, com urgência, acabar com a pobreza e minimizar o sofrimento, com a força e a estratégia do amor. Sou fiel testemunha de que os Missionários e Missionárias, que trabalham na Guiné com infinita generosidade, contribuem, em grande parte, para as soluções necessárias ao desenvolvimento deste país e à felicidade das suas gentes. Nunca vi ninguém fazer tanto com tão parcos recursos, como sejam os missionários. São eles e elas que, todos os dias, beijam o chão sagrado da Guiné, com a sua entrega e doação, e sempre abraçam a dor de tantos inocentes, tornando-se instância segundo do amor, que Deus dedica àquele sofrido mas querido povo.
Correm magoados os dias de tantas pessoas da Guiné, mas, por incrível que tal pareça, até às tristezas esta gente oferece a ilusão de que o tempo é bom e de que a vida é sempre uma bela aventura e, por isso, pintam sempre o rosto de airosos sorrisos!
Não gosto do pessimismo nem do negativismo, pois é cantando a esperança, que se obtém a derrota do desespero; é cantando a alegria, que se consegue a vitória sobre a angústia; é cantando a luz, que se faz a aurora; é cantando a vida, que se afirma a nossa imortalidade; é cantando o Amor, que se realiza a nossa primeira e maior vocação; é sendo otimista, que se obtém a certeza de que a Guiné “não é terra do demo e eternamente abandonada, mas filha de Deus muito amada e pátria nossa irmã”!
Foi por causa desta esperança, e em virtude desta irmandade, que a Diocese do Porto se quis constituir como instância do humano bom e do divino excelente, ao decidir oferecer um jipe à Guiné-Bissau. E o Bispo do Porto, numa decisão verdadeiramente surpreendente e num ato realmente profético, mostrou, ao querer pisar o chão da Guiné, que é com gestos como este, que a Igreja traduz a fidelidade à sua idiossincrasia, assim tornando credível a sua mensagem e evidenciando a sua catolicidade.
Quanto a nós, os quatro padres e outros tantos audazes e corajosos leigos, ousamos dobrar o cabo tormentoso do querer e viemos do Porto à Guiné, de jipe e de pick-up, realizando uma humana transcendência.
Agora, que daqui partimos com a epopeia chegada ao fim, sentimos ter vivido uma aventura sem remate… Quem sabe se, por causa disto, aqui não voltaremos, se no nosso interior fizer Deus outro rebate!…
(Diário da Viagem “Abraço à Guiné”, fevereiro de 2019)
A sessão terminou com cânticos africanos cantados pelos seminaristas dos Espiritanos.