Lembra-nos o Documento final do Sínodo que «para entrar na fé pascal e tornar-se testemunhas dela, é necessário reconhecer o próprio vazio interior, as trevas do medo, da dúvida» (nº 14). Somos assim convidados a aceitar que a ressurreição de Cristo na madrugada de Páscoa se mantém um denso mistério, que nos transcende.
Os relatos das aparições no claro-escuro dessa longínqua alvorada são um alerta contra a vã pretensão de pensar que a razão humana pode abarcar tão grandioso acontecimento divino. As confissões de fé pós-pascal nos textos do Novo Testamento testemunham que Cristo não apareceu ressuscitado aos discípulos, de uma forma espetacular. Apesar de os anjos terem dito às mulheres amedrontadas que não deviam procurar entre os mortos o Vivo, porque ele ressuscitou (Lc 24, 5-6), nem elas nem nenhum dos outros discípulos viram Jesus a ressuscitar, pois o Senhor só lhes apareceu depois de ter saído do túmulo, manifestando-se já numa situação de vida completamente nova.
A fé é um caminho trilhado na confiança, mas não é uma experiência de posse. Quando nos fechamos numa rigidez de certezas pré-definidas, deixa de haver em nós espaço para acolher as lentas maturações do mistério da Páscoa. Tomé chegou à fé no Ressuscitado só depois de ver os sinais das feridas naquele que ele tinha visto crucificado, os discípulos de Emaús abriram-se à sua presença só depois do sinal do partir do pão e Maria Madalena só reconheceu Cristo redivivo, quando este a chamou pelo seu nome. Foram estas experiências feitas de arrebatamento e de assombro que alastraram para toda a comunidade nascente da Igreja e que chegaram até nós como a referência fundadora da nossa fé pascal, por vezes vivida na escuridão e no meio de falsas apreensões. Lembrou-nos há anos o agora cardeal Tolentino Mendonça: «Repetimos a palavra aleluia no provisório (…) pois o nosso amor, a nossa fé, a nossa esperança continuam precários, inacabados ou imperfeitos». É a partir dessa nossa fragilidade que descobrimos a necessidade de abertura aos inesperados sinais do eterno amor materno de Deus. É Ele que nutre a nossa confiança e que nos embala durante o nosso caminhar, até sermos acolhidos no seu regaço, como nos relembra frei Bento Domingues: «Morrer é ser acolhido pelo irrepresentável mistério da infinita misericórdia divina, não como coroa dos méritos conseguidos durante a existência terrestre, mas devido à insondável graça do amor que Deus nos tem».
Estamos a festejar esta Páscoa no Ano do Jubileu da Esperança. No Antigo Testamento, os anos jubilares, associados à recordação da libertação de uma histórica condição de escravos (Dt 5,15), lembravam a necessidade de repor uma harmonia que foi sendo corrompida pelas quotidianas práticas de injustiça e de opressão. O jubileu poderá ajudar-nos a viver com mais vigor a celebração da Páscoa, vendo nessa passagem um robustecido desafio a fazermos o que estiver ao nosso alcance para tornar o mundo naquilo que Deus quer que ele seja. No meio de tantas incertezas e dos dramas que ensombram o nosso tempo, podemos sucumbir à tentação de baixar os braços, ao vermos como a dignidade humana está a ser espezinhada. Neste tempo tão dado à cultura da desgraça, precisamos de ser nutridos por novas energias de esperança, que nos relancem para o futuro, ultrapassando egoísmos e medos. Que a celebração da Páscoa neste ano jubilar possa estimular-nos a reflorestar a esperança nos áridos desertos deste mundo. Este compromisso deverá ser muito concreto, realizando nas relações da vida quotidiana gestos de reconstrução da fraternidade, hoje tão ferida por impúdicas contraverdades, que nos poem a desconfiar de tudo o que nos chega nas redes sociais.
A Páscoa não leva a ignorar as numerosas realidades da morte, provocadas pela miséria e pelo horror da guerra, mas abre-nos para o horizonte de uma radical salvação que este mundo não pode conter. As obscuridades do nosso caminhar neste mundo precisam de se deixar iluminar pela claridade desse dia radioso, para que não desfaleça a nossa confiança.
O fogo novo que deu início à Vigília Pascal exprime de forma ritual que o Ressuscitado vem acender em nós cintilações que deixam dar à nossa vida presente a dimensão da eternidade. Que esse esplendoroso fulgor seja para nós a revelação do triunfante amor eterno de Deus. Não esperemos pelo nosso último suspiro para abrirmos o nosso ser ao que ele já tem de eterno.
Texto: Dr. Manuel António
- Expresso 03/04/2021
2. Jornal Público, 08/01/2023