As melodias do silêncio

Se havia coisa em que a Beatriz não tinha saído nem ao pai nem à mãe era na concentração. A frase repetia-se todos os santos dias:

– É incrível! Estás sempre distraída e não consegues estar um minuto calada!

A Beatriz era uma menina inteligente mas os professores estavam sempre a lamentar-se, dizendo que poderia ter excelentes resultados se fosse mais empenhada e não estivesse sempre na conversa com os colegas na sala de aulas.

Em casa, passava todo o tempo a ver televisão, a jogar tablet e a ouvir música e conseguir arrancá-la do quarto para ir comer ou fazer outra coisa qualquer era uma tarefa árdua. Primeiro que conseguisse ouvir a ordem, olhar para os pais e obedecer-lhes era um dia de trabalho.

Um dia, depois de a mãe a ter chamado cinco vezes para que fosse jantar e ela nem sequer ter respondido, o pai foi ao seu quarto e disse-lhe:

– Beatriz, chega! Isto não pode continuar assim. Na tua cabeça há muito ruído e isso impede-te de ver o essencial. Durante uma semana, não verás televisão, não jogarás no teu tablet e não ouvirás música. Tens que falar menos e escutar mais. Tens que descobrir o silêncio.

A menina ficou sem reação. Era-lhe absolutamente inconcebível viver sem aquilo tudo que tornava o seu quotidiano mais agradável. E começou logo a apresentar mil e um argumentos para que a decisão fosse revogada. No entanto, o pai não recuou. Teria mesmo que procurar o silêncio.

Para a Beatriz, o silêncio era o mais doloroso sacrifício, o mais terrível sofrimento e a mais inútil experiência. Era sinónimo de apatia, vazio e nada. O silêncio incomodava e chateava como tudo. Era horrível estar sem conversar e sem ouvir coisas.

No dia seguinte, ao chegar a casa, foi ter com o pai e disse-lhe toda satisfeita:

– Já descobri o silêncio. Fui a uma enciclopédia na biblioteca da escola e dei-me conta que há muitos provérbios populares que falam disso.

Então, tirou da mochila uma folha onde escrevera vários ditados: ‘O silêncio também é resposta’, ‘O silêncio é a alma do sossego’, ‘O silêncio é a virtude do ignorante’, ‘A palavra é de prata, e o silêncio é de ouro’, ‘Bom silêncio vale mais que uma pergunta’, ‘A palavra é do tempo, e o silêncio, da eternidade’, ‘Na companhia de estranha gente, o silêncio é prudente’, ‘O silêncio é às vezes mais eloquente que os discursos’, ‘O silêncio é uma virtude quando nos evita dizer ou ouvir tolices’, ‘O silêncio é a alma do negócio’, ‘Bom silêncio vale mais que má pergunta’, ‘A alma dos discretos é o silêncio’, ‘O silêncio é a vingança do sábio maltratado’, ‘O silêncio é a virtude dos fracos’, ‘Silêncio não significa esquecimento’, ‘O silêncio, é a retórica dos amantes’, ‘O silêncio também fala’.

O pai e a mãe da Beatriz entreolharam-se e sorriram. A iniciativa da filha de pesquisar o significado do silêncio foi elogiada e ela pediu logo que o castigo fosse levantado pois descobrira a importância do silêncio. A mãe respondeu:

– Filha, são frases muito interessantes… mas muito vagas e abstratas. Palavras e mais palavras que as pessoas todas dizem quase sem pensar. Só quem é capaz de fazer silêncio, consegue descobrir o seu valor. Devias ouvir pessoas que conseguiram saborear o silêncio.

A Beatriz estava a começar a ficar sem paciência e irritada com aquilo tudo mas percebeu que tinha que fazer mais para descobrir o dito cujo silêncio. Lembrou-se que no jardim perto da escola era costume ver lá um velhinho sentado sempre a ler um livro e decidiu ir ter com ele, perguntar-lhe se sabia o que era o silêncio. Ele disse:

– Não sei o que é o silêncio… O que te posso dizer é que aprendo muito com o silêncio e ele ajuda-me a encontrar-me a mim mesmo, a conhecer-me e a descobrir o mundo, a humanidade e o sentido da vida.

A Beatriz ficou confusa. Era filosofia a mais para a sua cabeça. O velhinho ao aperceber-se, para facilitar as coisas, decidiu citar-lhe algumas frases que sabia de memória de autores famosos:

– ‘É melhor ser rei do teu silêncio do que escravo das tuas palavras’ (William Shakespeare), ‘O silêncio é um amigo que nunca trai’ (Confúcio), ‘Arrependo-me muitas vezes de ter falado, nunca de me ter calado’ (Públio Siro), ‘Nunca quebres o silêncio se não for para o melhorar’ (Ludwig Beethoven), ‘O silêncio é a maior sabedoria do homem’ (Píndaro), ‘A palavra é tempo, o silêncio é eternidade’ (Maurice Maeterlinck), ‘O que se faz de grande faz-se em silêncio’ (Eric Geijer), ‘Tenta cativar por aquilo que o teu silêncio contém’ (Fernando Pessoa), ‘Se o que tens a dizer não é mais belo que o silêncio, então cala-te’ (Pitágoras).

A Beatriz ficou admirada com a sabedoria do velhinho. Reconheceu que já não lia um livro há muito tempo e admitiu que havia muito barulho na sua vida. Depois de agradecer a simpatia do idoso, lembrou-se que havia um convento de clausura na cidade e ouvira dizer que as freiras que lá viviam faziam voto de silêncio. Então, decidiu ir lá.

Do lado de dentro de uma janela com grades, uma monja, ainda jovem, falou com ela. A Beatriz quis saber porque é que ela estava ali dentro e porque é que faziam voto de silêncio. A freira respondeu com um sorriso no rosto:

– Uma coisa posso garantir-te: nós não somos malucas por teremos decidido vir para aqui… Senti no silêncio do meu coração que Deus me chamava a consagrar-me completamente a Ele desta forma e sou muito feliz assim. De facto, além dos votos de pobreza, castidade e obediência, fazemos voto de silêncio pois isso ajuda-nos a melhor ouvir as pessoas e a Deus.

A Beatriz respondeu:

– OMG… Eu não era capaz! Os meus pais querem que eu descubra o silêncio e a coisa está complicada… Não consigo concentrar-me em nada e não consigo estar calada.

A religiosa respondeu…

– Como eu te compreendo bem… eu também tenho essa dificuldade. Olha, Jesus, de vez em quando, retirava-se da confusão e ia para um lugar mais discreto e isolado para sentir o sabor do silêncio e orar. Assim, criava o ambiente ideal para escutar e falar com o Pai. O Rei Salomão no Livro do Eclesiastes dizia que havia um tempo para tudo e afirmava que havia um tempo para falar e um tempo para estar calado… O silêncio é muito fecundo porque fala… assim, deixamos a nossa consciência exprimir-se. Já viste que até na música têm que existir as pausas? A harmonia na música e na vida só acontece com silêncios.

A Beatriz agradeceu muito as palavras da jovem freira e foi para casa. Pela primeira vez, chegou a casa e, depois de dar um beijo ao pai e à mãe, permaneceu calada a olhar para o vazio. Desafiada a dizer o que se passava, contou tudo quanto tinha ouvido do velhinho e da monja. Depois, foi para a varanda e sentou-se a olhar o céu, as casas, as pessoas e os carros. Então, o pai disse-lhe:

– Acho que estás quase a encontrar o silêncio. Mas ainda falta fazer uma coisa. Para seres alguém na vida, para conseguires ser sábia e superar as adversidades da tua caminhada, durante dois dias escuta e aponta num caderno todos os sons da cidade que conseguires.

Sem perceber muito bem o alcance do desafio do pai, a Beatriz foi prestando atenção a todos os ruídos e melodias e foi descrevendo-os pormenorizadamente no seu bloco de apontamentos.

No final da tarde do segundo dia, descreveu tudo quanto conseguira identificar: os motores e as buzinas dos carros, as sirenes da polícia e dos bombeiros, o som dos aparelhos de televisão, de rádio e música, as pessoas a conversar, as crianças a sorrir e a brincar, o vento a soprar, a chuva a cair, os cães a ladrar e os passarinhos a cantar.

O pai e a mãe da Beatriz estavam contentes com o seu empenho na missão que lhe tinham dado. Contudo, a mãe disse-lhe que ainda não tinha encontrado o som do silêncio. Precisava aprofundar a perceção inefável do silêncio que envolvia todos os sons e todas as coisas. E pediu-lhe que durante mais um dia tentasse ser ainda mais atenciosa e, aguçando os sentidos, tentasse apurar a sua escuta e perceber mais profundamente tudo o que estivesse à sua volta.

Sem perceber o porquê da insistência naquele exercício, a Beatriz colocou todo o seu esforço e dedicação na continuação da missão atribuída pela mãe. A verdade é que nada de novo conseguia ouvir. No entanto, no final da tarde, algo estranho aconteceu. Apesar de ser hora de ponta na cidade e o barulho do trânsito ser mais que muito, quando se sentou na relva do jardim a olhar para as árvores e a contemplar o pôr-do-sol, sentiu uma paz e uma serenidade nunca antes experimentada.

Deitando-se no relvado, sentia no seu coração uma inexplicável sensação de encantamento que tomou conta do seu ser. Sem saber como nem porquê, conseguia abstrair-se do barulho citadino todo e apenas escutava os passarinhos que esvoaçavam por ali a chilrear e o suave vento que fazia dançar as folhas das árvores. Ao contemplar as nuvens e depois ao fechar os olhos, conseguia escutar mil e um pequenos sons da natureza de que nunca se apercebera. Não tinha pressa, sentia-se em paz e harmonia consigo e com as pessoas e nada mais quis do que desfrutar aquele momento mágico em que não pensava em nada nem se preocupava com coisa alguma.

Com uma sensação de felicidade que jamais experimentara, foi para casa com vontade de contar tudo aos pais. Quando lá chegou, não conseguiu dizer nada. Não tinha palavras para exprimir tudo quanto sentia. Os seus olhos diziam mais do que mil palavras e os pais perceberam. A Beatriz Tinha conseguido encontrar o silêncio.

Então, a mãe disse:

– Muito bem, filha. Fizeste o teu próprio caminho e descobriste o dom e o som do silêncio. O silêncio não é algo exterior a nós… O barulho ou o silêncio está dentro de cada pessoa. É possível experienciar o deserto na cidade e a paz no meio da confusão. Há silêncios que dizem tudo e há palavras que não dizem nada. Para ser feliz é preciso experimentar o silêncio.

De seguida, o pai acrescentou:

– Estamos orgulhosos de ti. Nunca mais te esqueças que o silêncio é um tesouro. Ele fala mais do que parece… Francisco de Sales dizia que o bem não faz barulho e o barulho não faz bem… Olha que a carroça quanto mais vazia mais barulho faz… A pedagogia do bem é ser silencioso com a semente… O silêncio é fecundo e fonte da sabedoria. Ao mesmo tempo, peço-te que penses nesta frase de Martin Luther King: ‘O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem carácter, dos sem ética… o que me preocupa é o silêncio dos bons’. Por isso, valoriza o silêncio mas não deixes de falar quando isso for necessário, útil, oportuno e eficaz.

A Beatriz sorriu e, abraçando os pais, disse-lhes que gostava muito deles. Podia voltar às suas ocupações sonoras habituais. No entanto, preferiu deliciar-se com as melodias do silêncio.

Fonte: IMISSIO