Diário de viagem IV: Uma cáfila, os mexilhões, o jejum forçado e o zelo policial

Foi muito cedo que o despertador martelou um som estridente e incomodativo. Era imperativo: tínhamos de sacudir os nossos corpos fatigados e saltar do conforto que uma cama sempre dá e levantar-nos para a aventura do quarto dia, que sabíamos longa. Não demorou, por isso, a que todos se aprontassem rapidamente e se apresentassem na sala do pequeno-almoço. Um luxo, pois enquanto nos outros dias éramos nós que tínhamos de o preparar, este estava incluído no preço do hotel. O dia começava bem, pois poupámos tempo e os nossos géneros alimentícios.

Terminado o ritual de meter tudo nos carros, coisa que não é fácil mas que o mestre André sabe fazer melhor do que todos, arrancámos quando Marraquexe ainda se vestia de breu e o sol escondia, para lá da linha do horizonte, uma envergonhada preguiça em se levantar.

Embora ainda noite, o trânsito já era frenético e a condução exigia todos os cuidados, coisa normal nesta cidade onde todo o tipo de veículos se misturam num caos em que até as regras mais simples não se cumprem.

Mas quando já estávamos afastados desta confusão, o sol levantou- se e começou a beijar uma paisagem fantástica, quase zen: montanhas maravilhosas, nuas de vegetação e com uma pele cor de argila, vales longos vestidos de uma serenidade indizível que ondulavam o nosso olhar, curvas e contracurvas que depois se esticavam em retas infindáveis que nos atiravam para uma contemplação quase mística.

Enfim, de Marraquexe a Tam Tam La Plage a paisagem foi uma missa que o Criador nos celebrou, deixando o nosso coração ajoelhado de gratidão e comoção. Até fomos prendados com a primeira cáfila de camelos. Eram, no mínimo, uns 50. As crias foram as que mais prenderam a nossa atenção. Os camelos não são animais bonitos, mas revelam uma lenta calmaria que nos dá a confiança para nos aproximarmos deles, coisa que toleram.

Como a intenção era chegar a Tam Tam La Plage antes de o sol se pôr, apenas fizemos as paragens estritamente necessárias e passámos, apressados, por várias cidades que se nos atravessaram no caminho.

O programado e desejado foi conseguido: chegámos ao local da pernoita ainda cedo e a tempo do mestre André, que sempre nos surpreende, ir pescar mexilhões no mar de Tam Tam, que se apresentava calmo para nos receber. Tão bons estavam, que mais depressa se comeram do que se cozinharam. O António, que chegou mais tarde à mesa, teve de se contentar com um jejum forçado, pois o Almiro, depois de comer a porção que lhe estava reservada, tratou também da que estava destinava ao António. A gula não é comer muito: é comer tudo e não deixar nada para os outros.

Notícia do dia: os polícias marroquinos, que vestem fardas tão aprumadas que parecem sempre preparados para receber o Rei e aparecem em todos os cantos e esquinas, resolveram tirar uma fotografia ao homem mais bonito deste grupo que ruma à Guiné. Imaginem quem foi o escolhido: o mais pequenote. A fotografia foi tirada a partir de um carro estacionado na berma e camuflado. Mais à frente, dois desses agentes, colocados em sítio estratégico, fizeram paragem para dizer ao Almiro que tinham uma foto dele e que custava 150 dirhams.

O Almiro bem argumentou que, em Portugal, há uma lei que obriga à protecção de dados e que, por isso, eles deviam destruir a foto. Desconhecendo a lei portuguesa e mostrando até completa indiferença pelo argumento, explicaram que o condutor circulava a 76km/hora num local onde só se podia andar a 60km e que esses Ayrtons Senna tinham todos direito a uma foto. O Almiro pediu para a ver e, como até estava favorecido, aceitou pagar o equivalente a 14 euros, com a condição de os zelosos polícias marroquinos mandarem a malfadada foto encaixilhada para Portugal, e a alta velocidade. Entretanto, o Almiro, no regresso, vai falar com a polícia portuguesa, para multar o embrulho pela  velocidade excessiva com que vai atravessar Portugal. Olho por olho, dente por dente…

Padre Almiro Mendes

Fonte: O 7MARGENS