TanTan Plage. Aqui dormimos e daqui partimos para o quinto dia da nossa jornada.
Guardo memórias contraditórias deste local onde sempre convém parar: sofredoras, pois quando vim trazer o primeiro jipe à Guiné, em 2007, a pick-up que nos acompanhava queimou a junta de colaça e aqui estivemos três dias e três noites a consertá-la, num esforço hercúleo e num teste à paciência; benévolas, porque contactámos com a população local como em nenhuma outra ocasião (jogámos vólei de praia com os jovens e as jovens marroquinos, coisa que parecia impensável!)e comemos os melhores mexilhões da vida toda, que nós próprios pescámos e cozinhámos num fogão emprestado por uma francesa que não teve vergonha alguma de se apresentar com uma crosta de sujidade que media vários centímetros e fazia os olhos vomitar (refiro-me ao fogão, porque a francesa apresentou-se bem limpinha e tratadinha).
Nessa altura, morava aqui pouca gente que não estava habituada a forasteiros e tudo era muito pobre. Passados estes 12 anos, encontrei uma TanTan completamente nova: muita construção, muitos hotéis, uma marginal digna dos países mais desenvolvidos com muros revestidos da melhor mármore, que até o mar vinha beijar. No fim do jantar passeámo-nos por lá estupefactos com tanto desenvolvimento e dizendo bem do monarca marroquino. Foi nesse passeio à beira mar que decidimos fazer campanha, logo que regressássemos a Portugal, para que vá abaixo a República e o nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa seja aclamado nosso Rei!
Como sabíamos que a jornada ia ser muito longa, levantamo-nos às 4h30 da manhã (hora portuguesa), tomámos o pequeno-almoço, sem tempo para o mastigar, e rumamos a Dakhla, a mais de 800km.
Duas coisas nos foram moendo o corpo e dilacerando a paciência : os contínuos controlos policiais e a estrada cheia de buracos, num dos troços em obras. Estes eram tantos, que mais valia o Governo marroquino colocar um fecho éclair. Assim fechávamos o buraco, como quem fecha um blusão, para passarmos sem estragar os carros.
Era nossa intenção parar para almoçar num local paradigmático para os portugueses: o Cabo Bojador. Foi aqui que Gil Eanes, ao dobrá-lo, mostrou que o medo já não era do tamanho do mundo. E “quem passa o Cabo Bojador, passa além da dor”. E conseguimos! Chegámos a Bonjadour pela uma da tarde. Comemos abrigados pela sombra do monumento que não tem nem a grandeza nem a dignidade dos nossos ilustres navegadores: é simples de mais para um feito tão grandioso!
Sabem quem não foi pequeno na coragem e na ousadia? O António e o Luís Pedro! Para espanto do grupo, apresentam-se de calções de banho e atiram-se ao mar como quem berra a coragem do “portuga” e como quem presta justa homenagem a Gil Eanes. Até me arrepiei ao vê-los, depois, a secarem o pêlo ao vento, que ali soprava agreste e bravo.
Foi daí que enviámos um filme que, soubemos depois, passou no Porto Canal às 18h30 e onde mostrávamos, orgulhosos, o nosso bar montado no motor do jipe. Sim, não é ficção: todos os dias abrimos o capô do jipe, o Teixeira monta uma máquina especial e tomamos café que, garantimos, não é feito com água do radiador. Alta tecnologia também “portuga” com patente registada!
Partimos consolados. Parámos, passadas longas horas, numas falésias fantásticas para beber as últimas cervejas (chorámos a desgraça!) e lancharmos. Foi aí que o padre maior de todos, o amigo Luki, foi o mais pequeno no juízo ao arremessar o jipe pela zona red linedas falésias! Enfim, a adolescência continuada no tempo. Logo lhe perdoámos, por ser ele tão fantástica pessoa e tão extraordinário amigo.
Daqui a Dakhla foi um salto de pardal. Chegámos na melhor altura: estava o sol a deitar-se no horizonte e maquilhar-se de beleza, como fazem as mulheres antes do repouso (e nos semáforos enquanto estão vermelhos…). Estava divinamente belo! Parámos para o fotografar e rapidamente nos dirigimos para o Dar Dakhla, alojamento reservado previamente mas que se mostrou mais fraco do que esperávamos. Mas não há versão de luxo para uma “peregrinação” destas.
Dois estavam tão cansados, que nem quiseram jantar. Os outros seis já tinham tão poucas forças, que lhes faltava a vontade para cozinhar. Resolvemos ir comer fora. Pela primeira vez!
Também pela vez primeira, os nossos carros ficaram na rua cheios das nossas tralhas e do material que levamos para oferecer à Guiné, sem ninguém a guardá-los. É por isso que me deito tão cansado, quanto preocupado!…
Companheiro de viagem: Tito Baião, 67 anos
Moro em Matosinhos e sou fã do Benfica. Estou reformado, sou ex-gestor e professor e atualmente presidente da ONGD (Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento) Na Rota dos Povos.
Nasci no ex-Congo Belga (hoje República Democrática do Congo), onde estive até aos 11 anos. Fui para Portugal em 1962 onde me formei e trabalhei.
Em 2001 fundei com vários amigos a organização Na Rota dos Povos, para passarmos recibos aos patrocinadores de aventuras de viagens de moto pelo mundo e alguma ação humanitária.
Numa das muitas viagens que fiz de moto, nomeadamente uma volta ao mundo, um dos elementos da Na Rota dos Povos foi abordado por um guineense em Catió, que nos pediu ajuda para “ter maior capacitação”, ou seja, serem “melhores pessoas”. Isto atingiu cá o senhor professor, que pôs em marcha toda esta dinâmica, auxiliado por mais de 30 pessoas há mais de dez anos, transformando e obtendo o estatuto de ONGD para a “Na Rota dos Povos”. Entretanto já fiz aRota Porto-Bissau três vezes, a última das quais tinha sido em 2014.
A cerca de 360 quilómetros a sul de Bissau, na região de Tomabil, setores de Catió, Cacine, Quebo, Bernanda, Ilha do Komo, nos últimos 10 anos, montámos e/ou oferecemos:
210 salas de aula, com carteiras, quadros, portas, janelas… material resultante das intervenções da Parque Escolar em Portugal e posteriormente oferecido pela DREN, bem como material escolar oferecido por 17 escolas e transportado em 19 contentores de 40 pés cedido pela Maerks em excecionais condições;
cinco bibliotecas;
uma casa para órfãos de mães que morrem no parto (inicialmente eu até recusei a ideia, por ser um projeto sem fim, mas a Susana Antunes, Otávio Coelho e Anabela, ambos da Curtes garantiram-me que haveria apoios mensais para esta causa);
um infantário dos 3 aos 6 anos;
um carro de transporte de doentes oferecido pela Cruz Vermelha, Gondomar e Valongo;
uma pick-up, oferecida por particulares.
Ficámos ainda responsáveis por irem 15 jovens estudarem e formarem-se em Portugal, para depois voltarem à Guiné; quatro deles já se licenciaram e já voltaram ao seu país.
Estou nesta viagem para levar a pick-upe fazer a rendição dos voluntários em Catió. Eles estão lá desde o início de Janeiro, continuando a ação humanitária desenvolvida nestes 10 últimos anos.
O que mais me surpreendeu nesta primeira metade da viagem foi o enorme desenvolvimento de Marrocos nestes últimos cinco anos. E o que espero da segunda metade? Sempre fiz esta viagem atravessando a Gâmbia e nunca tive problemas nas fonteiras, apesar de em alguns trajetos haverem barreiras de troncos e “ninho de metralhadora” por problemas com o movimento de libertação de Casamansa, entre a Gâmbia e Guiné-Bissau. Desta vez, o plano é contornar totalmente a Gâmbia; portanto, é um percurso com mais de 800 km novo para mim.
Fonte: 7MARGENS acompanha desde domingo passado, 3 de fevereiro, através de um diário de viagem, a expedição do padre Almiro Mendes e dos seus companheiros rumo à Guiné-Bissau para entregar um jipe, uma pick-up e outras ajudas a várias missões católicas e organizações não-governamentais.