O bispo de Bafatá, Pedro Zilli, com os quatro padres do Porto,
na fronteira da Guiné-Bissau com o Senegal. (Foto © André Ferreira)
Uma equipa de futebol, mesmo que esteja a ganhar, fica sempre mais tensa e instável quando joga os últimos minutos. Acontece tantas vezes que são os últimos instantes do derby que determinam a vitória ou não.
Quando saímos de Kolda era assim que nos sentíamos (pelo menos eu), pois adivinhávamos a vitória deste “jogo” por estarmos tāo perto do final, mas havia que continuar com todos os cuidados: nesta África, sempre tão imprevisível, de um momento para o outro tudo se pode alterar com consequências nunca imagináveis.
Faltou pouco, por exemplo, para matarmos dois porcos por atropelamento. Foi preciso travar a fundo e tapar os ouvidos para suportar a chiadeira que os pneus do jipe fizeram ao cravarem as garras no chão negro do alcatrão que ficou a fumegar. E quem mata um porco em África, paga um boi! Mas, graças a Deus, tirando este episódio, de Kolda a Zinguinchor a viagem correu uma maravilha.
Havia apenas um sentimento estranho e incomodativo de orfandade, pois já não nos acompanhavam os nossos amigos leigos; tinham-se separado de nós para entrar por outra fronteira, cortando assim muito caminho, a fim de chegarem antes da noite a Catió. Foi com este sentimento que depressa nos pusemos em Zinguinchor, cidade muito comercial e movimentada nas bordas da Guiné e onde eu já tinha estado tantas vezes.
Daqui à fronteira foram uns 15 quilómetros. A saída do Senegal foi rápida e sem burocracias.
E mais uns metros… estávamos na amada Guiné! Tínhamos entrado em casa! Chegámos sãos e salvos e com o jipe sem nenhuma mazela!
Comovedor!
Afinal, o impossível é só o que a gente não quer ou não tenta!
Seja Deus louvado!
Foi neste momento que os meus óculos de sol embrulharam e esconderam as minhas lágrimas que não quis que os meus colegas vissem. Reparei que também eles tragaram as palavras na garganta e iluminaram o rosto de emoção e, sobretudo, de encantamento ao verem na fronteira, para nos acolher e abraçar, o bispo de Bafatá, D. Pedro Zilli, que é uma pessoa verdadeiramente encantadora e admirável!
Parece que não merecíamos tanto, mas a verdade é que nos sentimos muito confortados com a sua presença. E com o bispo ao nosso lado, nem as autoridades fronteiriças, nem a polícia, nem os militares nos importunaram até chegarmos a Bissau, viagem que demorou umas 2h30, se descontarmos o tempo em que estivemos a almoçar em S. Domingos com o bispo, o pároco e um outro sacerdote.
Apenas fomos molestados pelas estradas, que estão num mísero estado, e por um polícia que nos mandou parar e queria multar o condutor Mestre André por vir a conduzir com óculos de sol. “Na Guiné é proibido conduzir com óculos de sol e vai ter que pagar uma coima”, disse o jovem polícia, que logo corou de vergonha ao ver o senhor bispo ao lado do condutor. Esta gente é tāo pobre, que o que ele queria era uma notita das mais pequenas, que nem chega a um euro. Quer-me parecer que nem pedia para ele, mas para os filhos, que aqui são quase sempre muitos e desprovidos.
Mas hoje o dia era realmente muito especial por três razões: o fim da nossa aventura de jipe Porto-Bissau; a chegada do bispo do Porto, D. Manuel Linda, que ao oferecer o jipe à Guiné, tornou tudo isto possível e se constituiu como instância do humano bom e do divino excelente; o aniversario natalício do grande Mestre André, companheiro fantástico, cozinheiro admirável e sobretudo padre extraordinário! Sinto orgulho em ter sido seu professor! O jantar de festa foi na Pensão Coimbra, depois de termos ido buscar o senhor D. Manuel Linda ao aeroporto. Nem queríamos acreditar: no bispo D. Manuel Linda, nos quatro sacerdotes e no jipe (baptizado ontem de Miro-Móvel) a diocese do Porto abraçava a querida Guiné num gesto verdadeiramente profético!
Admirável!
Há quem deseje uma nova vida. Eu contento-me com um novo olhar sobre a vida que me é oferecida em cada dia como o maior dom. E é exactamente isso, parece-me, que uma viagem como esta proporciona. Não ficamos melhores nem piores, mas diferentes. Ao vermos tanta pobreza, deixamos de nos queixar por não termos sapatos, quando reparamos que tantos não têm pés; em vez de desejarmos apenas consumir, apetece-nos consumar; ao atravessarmos todos estes países ficamos com mais vontade de passar pela vida e não deixar que seja a vida a passar por nós; ao transpormos todo este imenso deserto exterior faz apetecer ir para o deserto interior, para vermos melhor a desertificação que tantas vezes há dentro de nós.
Pregou o padre António Vieira que “notável criatura são os olhos”. E explicava: “Todos os sentidos do homem têm um só oficio; só os olhos tem dois. O ouvido ouve, o gosto gosta, o olfato cheira, o tacto apalpa, só os olhos têm dois ofícios: ver e chorar.”
Os olhos são, na verdade, um mapa íntimo e as lágrimas são, na maior parte das vezes, a marca de uma grande riqueza.
Julgo poder dizer que todos nós, os quatro leigos e os quatro padres que ousámos esta aventura do Porto a Bissau numa distância de 5.500 quilómetros, ouvimos sons únicos, sentimos cheiros indizíveis, provámos paladares diferentes e palpámos realidades que guardaremos sempre na grata memória do coração. Mas só os olhos viram o que neste diário não podemos expressar. E os meus até choraram a alegria por termos chegados à Guiné com saúde, ainda mais amigos uns dos outros e com a infinita alegria de deixarmos dois carros que, por certo, vão salvar muitas vidas.
Jung disse: “Parece-me que faz a vontade de Deus apenas aquele que procura realizar a sua natureza humana e não aquele que foge diante deste facto.”
Não sei se esta “aventura/peregrinação” foi vontade de Deus ou teimosia nossa. O que importa é que a realizámos, cumprindo simplesmente a vida.
Há quem possa e não queira; há quem queira e não possa; nós quisemos e pudemos vir do Porto a Bissau, entrelaçando o humano e o divino, aceitando o fácil e superando o difícil, ligando dois continentes e permitindo que se abraçassem as dioceses do Porto, Bissau e Bafatá.
Comovidos, bendizemos o Senhor!
Também agradecemos a todos e a todas quantos se quiseram fazer nossas irmãs e nossos irmãos pela leitura deste diário e pelas orações feitas. Um muito obrigado de coração ajoelhado!
Prometemos fazer ainda eco destes dois dias e meio que passaremos na Guinécom o nosso bispo. Se ainda nos quiserem continuar ler!
Padre Almiro Mendes
Fonte: 7MARGENS acompanha desde domingo, 3 de fevereiro, através de um diário de viagem, a expedição do padre Almiro Mendes e dos seus sete companheiros rumo à Guiné-Bissau para entregar um jipe, uma pick-up e outras ajudas a várias missões católicas e organizações não-governamentais