Intervenção do Pe Almiro após ter sido tornado público o relatório dos abusos de menores na igreja

Irmãs e Irmãos, vamos escutar, na primeira Leitura de hoje, Deus a fazer um grande pedido ao Seu povo: Sede santos, porque Eu, o vosso Deus, sou Santo” . (Lv 19,2).

E vamos ouvir, no Evangelho de hoje, Jesus a rogar uma grande mercê aos seus discípulos: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.  (Mt 5,48).

Sim, a santidade é o rosto mais belo da Igreja, como diz o Papa Francisco.  A Santidade é a grande bitola de toda a verdadeira vida cristã.

Confesse-vos que estes apelos de Deus nosso criador e de Cristo nosso redentor são, para mim,  uma luz numa grande noite onde eu, como padre, me perco numa grande escuridão: a obscuridade tenebrosa dos abusos de menores na Igreja católica que amo e sirvo.

A segunda feira passada, dia em que foi apresentado o relatório, foi para mim um dia de muito sofrimento e de grande terramoto interior. Fiquei soterrado nos escombros de uma dor que ainda não passou.

Como é possível haver padres abusadores dos nossos mais tenros em idade? Como é possível esse tão grande pecado? Confesso que fui um dos ingénuos a pensar que era capaz de haver um ou outro padre desequilibrado e patife. Mas tantos?  E como foi possível esconde-los durante tanto tempo?

Sim, os números do relatório foi um grande terramoto, em escala máxima, que abalou o edifício do meu sacerdócio, da Igreja em Portugal e das nossas vidas enquanto bons cristãos que procuramos ser.  O meu e os vossos corações ficaram duramente golpeados por tão grande desgraça!

Parece que se foi a minha alegria, enquanto cristão, e parece que morreu o meu entusiamo, enquanto padre.

Eu bem sei que a Igreja é de natureza teândrica, isto é, santa em Cristo que a fundou e pecadora em nós, que a continuamos. Mas este pecado não deveria existir na Igreja. Abusar de crianças não, porque isso é um crime mastodôntico, é a maior aberração de qualquer religião!

Este relatório escancarou o pior da miséria da nossa condição humana, e abriu feridas que são verdadeiras crateras de uma miséria incomensurável, a céu aberto, com vidas completamente destroçadas. A nossa dor nem sequer tem comparação possível com a dor das vítimas, pelo mal feito, e – mais ainda – pelo mal encoberto por alguns que tinham o dever de parar esse terrível tsunami de pecado e de insensibilidade.

Irmãs e irmãos, rezemos hoje esta missa também por esta intenção. Rezai por mim, porque vejo a fugir-me a alegria de ser padre e me sinto como que envergonhado ao subir ao altar. E eu rezarei por vós, que decerto também vos sentis envergonhados na sociedade pelo facto de serdes bons cristãos. Sim, rezemos esta missa uns pelos outros e rezemos todos pela Igreja que Jesus fundou para ser santa, bela e expressão do Seu amor a todos. Rezemos para que rapidamente a Igreja encontre caminhos de conversão, de humildade, de perdão, de reparação, de transformação, de arrepio, de fidelidade ao Evangelho, de intolerância total ao mal.

Rezemos para que a Igreja volte à santidade que Deus roga na 1º Leitura de hoje e que Jesus pede no Evangelho de hoje, porque a santidade é mergulhar e enraizar a nossa fragilidade na força da vida divina, da oração, da comunhão íntima com o Senhor. Sem Ele nada podemos fazer. Só na comunhão com Deus é que pode brotar, na ferida da nossa própria humanidade, este fruto da santidade. Parece-me que Cristo não exige uma Igreja perfeita, mas obriga a que sejamos plenamente humanos. Talvez a santidade esteja só nisto: sermos plenamente humanos. Num abusador de crianças não há humanidade nem divindade. Por isso, no dia em que ficar provado que um padre abusou, deve no outro dia já não ser mais padre e ser responsabilizado perante as Autoridades civis.

Rezemos sobretudo pelas pobres vítimas destes consagrados e leigos abusadores sem alma, sem coração e sem amor. Pobres destes seres que foram abusados! Como deve ser tão grande o seu sofrimento! Não as deixemos sós na noite da sua dor! Choremos a dor destes feridos e demos-lhes a nossa mão através da nossa comunhão e oração!

Irmãs e Irmãos, não podemos desistir da Igreja que Jesus nos confiou. Apesar da nossa dor e da nossa desilusão temos de continuar!  Choramos a dor das suas feridas, que são também as nossas, mas deixemos que Deus nos enxugue as lágrimas e continuemos na fidelidade à santidade que Deus nos chama. Centremos a nossa fé em Cristo, Crucificado e Ressuscitado, que nos agarremos bem a Ele. Que a profunda tristeza que nos invade não chegue a corroer os nossos corações, mas nos mova e converta à santidade. Que as lágrimas da nossa penitência lavem o rosto tão sujo desta Igreja que somos, para que rebrilhe nela, de novo, o esplendor e a beleza da santidade de Deus.

E tomemos hoje uma decisão de agir por misericórdia: se conhecermos alguma criança abusada, ajudemos denunciando. Sim, tenhamos a coragem de denunciar. Calar tão grande pecado é perdermos a nossa própria dignidade!

Padre Almiro Mendes, pároco de Canidelo e Afurada