Entrevista Revista SÁBADO

Estrela da arte sacra do Vaticano em Canidelo

Como se convence um dos maiores especialistas em arte sacra, que fez a capela de João Paulo II, a vir a Canidelo?

  • Sábado
  • 22 Feb 2018
  • PorFilipaTeixeira

Com 63 anos, o esloveno faz mosaicos com pedrinhas de mármore e granito. A sua obra inspira-se em Kandinsky

Grazie per la pazienza”, diz-nos de imediato para logo se alongar nas respostas por e-mail à SÁBADO. Foram algumas semanas de espera, mas já sabíamos que o padre Marko Rupnik tinha uma agenda lotada, entre o trabalho como director do Atelier d’Arte Spirituale do Centro Aletti (comunidade fundada por João Paulo II), os retiros espirituais em que participa, as conferências para as quais é convidado, os artigos de teologia que publica periodicamente ou mesmo a sua posição como consultor do Vaticano. Contudo, o nome deste padre jesuíta de 63 anos, licenciado em Belas-Artes e doutorado em Teologia pela Universidade Gregoriana em Roma, viria a ganhar especial notoriedade pela sua obra enquanto criador de alguns dos mais belos mosaicos de arte sacra do mundo. Um dos mais falados está na capela Redemptoris Mater, no Vaticano, encomendado por João Paulo II.

Com uma visão marcada pela pintura vanguardista do séc. XX – em especial pelo abstraccionismo de Kandinsky (1866-1944) – e sempre em diálogo com as diversas influências artísticas contemporâneas, Marko Rupnik é admirado pela capacidade de fundir a arte ocidental das imagens religiosas com a tradição oriental. Nos seus grandes retábulos, montados numa zelosa sucessão de pedrinhas irregulares de granito, mármore, esmalte, prata, madrepérola, talha dourada entre outros materiais (a lista é demasiado vasta para estar aqui toda), Rupnik constrói uma obra ao serviço da liturgia através da representação da palavra de Deus e do relato das memórias de grandes figuras da Igreja – como acontece no Santuário de San Giovanni Rotondo, em Puglia, onde estão “pintadas” 12 cenas da vida do padre Pio, de Cristo e de São Francisco de Assis, o maior conjunto dos seus mosaicos.

De Roma a Canidelo

A expressão máxima da sua obra em Portugal é o painel da Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima. Em breve, Canidelo também juntará o seu nome a Fátima, desta feita não apenas com um painel, mas sim com os interiores completos – do altar ao grande retábulo, passando pelo baptistério, pelo sacrário e pelo ambão [um púlpito] – da futura igreja do recém-inaugurado Centro Paroquial Cidade de Deus e dos Homens. A culpa deste feito – que deixa fiéis e mesmo não fiéis surpreendidos – foi em grande parte do padre Almiro Mendes, o pároco que resolveu escrever em 2016, com o apoio do então bispo do Porto D. António Francisco dos Santos e do cardeal-patriarca de Lisboa D. Manuel Clemente, uma carta ao padre esloveno a explicar o que pretendia do projecto.

“Toda a gente me dizia que era impossível, que era uma ideia peregrina. Mas ele não só aceitou, como fê-lo de uma forma entusiástica”, revela sem esconder a emoção perante este autêntico “milagre”. Se para a maior parte dos cépticos este sim foi uma enorme surpresa, para Rupnik – confesso “parente próximo dos portugueses” e apaixonado pela aura de Fátima “que torna todas as coisas bonitas à sua volta” – tudo se desenvolveu de forma muito natural. “Percebi de imediato que esta era uma instituição com a qual valia a pena colaborar. Todas as obras falam das pessoas que lá trabalham e, acima de tudo, mostram a ausência ou plenitude de vida que existe por trás delas. Neste caso, senti que a vida da igreja estava muito presente”, diz à SÁBADO.

O primeiro encontro entre Rupnik, o padre Almiro Mendes e os arquitectos Valentim e Miguel Miranda, também envolvidos na obra, foi em Roma, numa ocasião que o pároco de Canidelo recorda com grande precisão. “Quando chegámos ao Vaticano estava com muito receio. Disseram-me que era surpreendente o padre Rupnik nos receber, mas que certamente seria uma recepção muito rápida.”

O que se passou a seguir foi exactamente o oposto. “Ele dedicou-nos a manhã toda, num diálogo e numa abertura que nós ficamos absolutamente admirados. Ofereceu-nos o almoço e levou-nos ao comboio. Logo ali, o padre Marko Rupnik revelou-se um artista também nas relações humanas.” Nada que tivesse surpreendido o padre jesuíta Marco Cunha, um dos homens que também desempenhou um papel importante na fase inicial das conversações ao servir de elo entre Canidelo e o

Vaticano. Viveu três anos no Centro Aletti e recorda desses tempos Rupnik, como um homem “com uma capacidade de trabalho assustadora” que “fascina, cativa e atrai: quando estamos a trabalhar com ele percebemos que não é nada individualista. Leva sempre a equipa para a frente e consegue-o fazer de uma forma genial.”

Nos seus projectos prevalece a ideia – também avançada pelo padre Almiro – do “nós solidário sobre o eu solitário” num trabalho que tem de nascer da comunhão entre todos e que, ao invés de se expressar como uma afirmação pessoal do artista, deve ser encarado como um dom ao serviço do belo, do amor e do divino. Talvez por isso mesmo seja difícil para o padre esloveno destacar as obras que mais o marcaram. “Todas são importantes, mesmo a mais pequena igreja”, conclui.

“Autocarros de turistas”

Foi quando Rupnik veio visitar o local do novo templo de Canidelo, no dia 4 de Janeiro, que o artista – que tanto se destaca na “arte sacra como na arte do trato” – ficou impressionado. “Encontrei uma extraordinária abertura eclesial e um profundo profissionalismo. Ninguém estava ali para impor a sua visão, mas sim para encontrar em total sinergia as soluções mais adequadas e respeitadoras para o espaço que está a ser construído”, recorda à SÁBADO. O diálogo fluiu sem barreiras – ora num português claro, que o padre Rupnik descodifica sem problemas, ora num italiano pausado, que os portugueses desenrascavam. E se a amiúde também foi necessário recorrer ao inglês, no que diz respeito aos aspectos técnicos da obra não houve mistura de idiomas. “Muitas vezes as igrejas modernas não são bonitas porque se olha e é uma confusão de linguagens,” aponta o padre Almiro. O pároco explica que para a sua igreja do Canidelo quis celebrar o valor da vida – não é por acaso que o edifício terá uma forma arredondada, de “útero”. Uma ideia defendida também por Marko Rupnik que para estes mosaicos homenageará Santo André e São Pedro, os padroeiros da comunidade local. O enredo bem como os contornos estilísticos ainda estão a ser estudados, mas pelas palavras do padre esloveno ficamos com a certeza de que esta igreja irá relacionar-se com os seus fiéis através de uma “arte convidativa, não invasiva”. E acrescenta: “A vida espiritual começa quando eu descubro que a minha existência é relacional.” No final da visita, o padre Marko Rupnik estava encantado e, apesar do pouco tempo que passou no Porto, ficou convertido à beleza da cidade – “ainda o levei à serra do Pilar, à Sé e ao centro histórico”, recorda o padre Almiro. O que se segue agora é um tempo de maturação das ideias e de paciência. “A primeira ideia, mesmo que permaneça até o fim, sofre muitas mudanças até à conclusão do projecto” explica Rupnik. E acrescenta: “Aqueles que aguardaram tiveram sempre um resultado muito mais apreciável.” Aguardaremos então até 2020, data apontada para a inauguração da futura igreja de Canidelo que tem pela frente o grande desafio de arranjar dinheiro para concluir a obra. Perante este facto o padre Almiro não mostra desânimo: “Prometo que será uma igreja de baixos custos. É possível fazer coisas extraordinárias de forma muito ordinária.” Para já, ainda são ruínas de um antigo pavilhão, com muros grafitados e traves de madeira apodrecidas, que tomam conta do lugar onde será erigida a igreja. Mas a expectativa do padre Almiro e de toda a paróquia é grande: “Tenho a certeza de que quando estiver pronta hão-de vir autocarros de turistas visitá-la.”