«Ouvem-se em Ramá»

Já nem sei bem ao certo a última vez que te escrevi. Andei novamente à deriva e fechei o coração. Iludi-me ao pensar que um coração confinado não sofre. Talvez sofra muito mais porque sente a aspereza da dor sem a graça da tua consolação. 

Ressoam alguns dos versículos que trazem o meu nome, pesado como a tua cruz: «Ouvem-se, em Ramá, lamentações e amargos gemidos. É Raquel que chora, inconsolável, os seus filhos que já não existem.» (Jr 31, 15). Lamentações, amargos gemidos, inconsolável… Mateus vai mais longe e diz que Raquel “não quer ser consolada” (Mt 2, 18). Quanto sofrimento carrego no nome. Quantas vezes me inebrio desse sofrimento: mãe sem filhos como Raquel, trespassada como Maria. Sou mulher sem de alguém o ser e mãe sem maternidade. Como posso ser fecunda nesta minha infertilidade? Quem sou, afinal? Se não suscito amor posso ser instrumento do teu? 

Continua a ser tão difícil discernir a tua vontade. Não percebo se és tu que a calas ou se sou eu que não me calo tempo suficiente para a ouvir. Tu conheces a verdade do meu coração melhor do que eu e és o único capaz de abrasá-lo. Sabes que oscilo entre a vontade de sussurrar-te o meu fiat e o receio de não estar a compreender o que me pedes. Corro para os teus braços, enquanto fujo do teu enlace. Nesta dança desconfiadamente apaixonada umas vezes conduzes tu, mas muitas vezes conduzo eu. E assim se conjugam as contradições da minha alma. O que mais te quero dar é precisamente aquilo que guardo no egoísmo das minhas inseguranças. Entristeço-me ao perceber que, como Paulo, “em mim, que quero fazer o bem, só o mal está ao meu alcance” (Rm 7, 21). 

Neste impasse de morte, só tu me podes trazer à vida. Quero querer o que tu queres. Quero responder-te ‘Aqui estou’ quando me chamas. Quero amar o amor porque fizeste-me para ti e inquieto está o meu coração enquanto não repousar em ti (cf. Agostinho, Confissões, I, 1,1).

Quando me resgatas de mim, percebo como o sofrimento obscurece a tua luz e cala a tua palavra. Cegos são os olhos que não querem ver e mocos os ouvidos que se detêm no passado quando o presente exclama: «Cessa de gemer, enxuga as tuas lágrimas! Pois haverá recompensa para as tuas penas. Amei-te com um amor eterno. Por isso, dilatei a misericórdia para contigo. Tens ainda uma esperança de futuro. Hei-de reconstruir-te, e serás restaurada». (Jr 31, 16.3.17.4).

Basta vislumbrar a tua luz para ver no sofrimento da tua cruz, o amor que nela cravaste com a vida nela entregaste. Obrigada por me relembrares que os teus caminhos não precisam de ser compreendidos, mas vividos a cada passo na certeza de que tu és o meu pastor, aquele que deixa 99 ovelhas para ir ao encontro daquela que se perdeu, por isso, nada me falta (cf. Sl 23, 1; Lc 15, 4).

Fonte: Imissio